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domingo, 27 de abril de 2008

"A vida e o sonho" de Maria Judite de Carvalho


Há algum tempo não escrevo nada. Há bastante tempo esse espaço tem ficado sem novas postagens ... sem mais o que pensar e ao mesmo tempo completamente tocado por um conto recém lido, resolvi transcrevê-lo aqui. Esse conto foi extraído da obra “Tanta gente, Mariana ...”, da ainda desconhecida por mim escritora lusa Maria Judite de Carvalho. Ei-lo:

A Vida e o Sonho

Podia ter sido caixeiro-viajante, maquinista de comboios ou marinheiro. Não era porém nenhuma dessas coisas porque nós não fazemos, somos construídos pelas circunstâncias. O pai, naturalmente à força de muitos pedidos, conseguira que logo aos treze anos o metessem numa casa bancária importante onde lhe tinham dado uma farda cinzenta e um lugar de futuro. "Menino, então esse cheque?", "Menino, leve esta letra ao senhor Silva!", "Então, menino?", “Meni-i-no!”. Ele afadigava-se, muito zeloso, já sério, ansioso por cumprir, e sem compreender ainda que o seu desembaraço e o seu zelo começavam já a enleá-lo todo naquela engrenagem de que nunca mais saberia libertar-se. À noite, em casa, devorava os livros de Emílio Salgari que um colega, Mais abandonado do que ele, lhe ia emprestando. Outras vezes folheava um velho atlas roído e vomitado já por várias guerras, que o pai comprava em tempos num alfarrabista. Mas o que podiam significar para o Adérito as linhas das fronteiras? A ele bastavam-lhe aquelas vastas extensões azuis, aquelas cidades de nomes exóticos que lia (mal) em voz alta, para se ouvir, quase com volúpia.
Depois os anos tinham passado quase sem ele dar por que passavam, cheios de dias longos, todos iguais, sem interesse. Começou a atender ao balcão, teve secretária própria com pasta e com esponja (era um lugar de futuro), conheceu mulheres – poucas – , casou. Era agora ele quem chamava “Menino! Menino!” E sentia sempre ao fazê-lo, como que um aperto na garganta, uma espécie que ele próprio não saberia explicar e também de culpa, principalmente de culpa para com aqueles rapazinhos sérios, ativos, muitos zelosos.
Pensava raramente (para ir até o fundo das coisas?), mas às vezes achava-se a dizer a si próprio que não tinha nascido para aquilo e que talvez ainda estivesse a tempo de fugir. Mas de quê? Para onde? Gostava do seu trabalho. Gostaria de fato? A verdade é que não sabia fazer outro. Números, números, dias, meses, anos de números, anos terrivelmente abstratos para ele e concretos, estava bem de ver para muitas outras pessoas. Não tinha nascido para aquilo, era possível. Mas quem nasce para o que é? – reflita a querer consolar-se. Era um homem plácido, habituado a suportar as contrariedades da vida. Um homem para quem os prazeres não eram muito fortes nem os desgostos muito intoleráveis. Um homem metódico, com sonhos impossíveis mas nenhumas ambições.
Vestia todos os domingos o seu melhor fato, punha a gravata do dia dos anos e saía para o futebol. A mulher também se preparava e ia à casa da mãe. Às vezes saiam juntos, só se despediam ao fim da rua, beijavam-se sem dar por isso. Era um costume antigo que tanto um como o outro sempre tinham achado natural aquele de se separarem ao domingo à tarde. Tão natural e imutável como irem ao sábado à noite ao cinema do bairro ver uma fita qualquer, a que andasse ao sábado à noite, e irem ao domingo à missa das onze a São Domingo.
Às vezes, ao jantar, a mulher perguntava-lhe:
-Correu mal, o jogo?
O Adérito respondia-lhe que assim assim ou então que não tinha prestado. E corava sempre ao de leve porque era um homem a quem toda a mentira desagradava. Se mentia era só por sentir que a mulher compreendia mais facilmente as mentiras que lhe dizia do que as verdades que pudesse dizer-lhe. Não conseguia imaginar - e muitas vezes tinha pensado nisso - qual seria a reação dela se lhe onde passava, há quantos anos, as tardes de domingo. Todas. Quer chovesse, quer fizesse sol. Não o acreditava talvez, as mulheres têm sempre dificuldade em crer nas coisas simples, transparentes. Sim, ela nunca acreditaria que ele fosse para os cais ver os barcos que partiam ou então para o aeroporto olhar os aviões que deixavam a terra. Um dia tinha falado ao Costa, seu colega do Banco, dessa sua predileção e o Costa tinha sorrido um pequeno ar superior. Se o Costa não podia compreendê-lo, como havia a mulher, uma pobre rapariga oca... O Costa ainda tinha perguntado:
-Mas que interesse é que pode ter ti essa gente que vai de avião ou de barco?
E isso é que era estranho. O Adérito não ia ao aeroporto nem aos cais para ver as pessoas que partiam. Também não ia ver o barco nem o avião. Era mais complexo.
Nem ele próprio sabia – era um homem simples que procurava nesses momentos, sem dúvida os mais felizes, os mais cheios, os mais completos da sua existência sem vida. Era tudo e não era nada ao mesmo tempo. O cheiro forte, levemente podre daquela água próxima, escura, já misteriosa, o ar salgado a bater na pele, as vozes enervadas, as corridas, os gritos, uma ou outra lágrima, aquelas palavras de aventura calma, organizada, a encherem todo o campo. Vi partir com destino a Karachi...Ou, com destino ao Brasil...ou para Nova Iorque...Depois, e isso era maior do que tudo, o grande pássaro a rugir, a arrastar-se pelo chão, depois a rasgar o espaço ou então o barco enorme a correr quieto como o tempo sobre as ondas ligeiras do rio quase oceano.
Às vezes deixava-se ficar até o barco desaparecer. Experimentava uma espécie de angústia, qualquer coisa como se alguém muito querido se tivesse ido embora para sempre. Mas não era bem isso. O que ele sentia era uma grande dor por essa pessoa, ele próprio, ter ficado.
Punha-se então a caminhar ao longo dos cais e havia sempre homens muito sujos ou talvez queimados de sol, ele não sabia, que tiravam ou punham fardos em navios de carga que tinham chegado ou iam partir. Homens com caras de aventura. Homens. Às vezes parava a olhar para os barcos, pequenos e de ar antigo, que a água apodrecera, sempre em movimento e sempre parados, presos com cordas grossas a postes de ferro. Presos para não irem água fora. Presos como ele.
Regressava sempre à casa melancólico. Via a mesa posta para o jantar, o abajur encamado, a estatueta do rapaz a comer cerejas (as cerejas balouçavam quando ele entrava) a própria mulher já gorda e amolecida da idade, com outros olhos, os olhos novos de alguém que regressou de longe e caiu de repente, sem preparação, na vida quotidiana, na vida antiga, na vida que estava à sua espera, na ‘sua’ vida afinal.
A mulher perguntava enquanto servia a sopa:
-Correu mal, o jogo?
Ele corava.
-Assim assim. E a tua mãe, como está?
Às vezes, à noite, chovia. Os pingos batiam com força na vidraça, o vento varria a rua toda. Ela deixava cair o trabalho no solo, enrolava-se mais no xale porque era muito friorenta.
-Sabe bem estar em casa, dizia.- Sabe onde eu me sentia feliz? Na África...
Ele sorria ao de leve, ia até à estante, abria o Robinson Crusoé ou um livro qualquer de Júlio Verne, tantas vezes lido que já lhe sabia passagens de cor.
Na manhã seguinte voltava ao Banco e somava e multiplicava e dividia. “Menino!”, “Então, menino?” Mas tinha um ar culpado e os garotos não o respeitavam. Era sempre ele o último a ser servido.
Certo dia um dos diretores chamou-o, fê-lo sentar numa daquelas poltronas de cabedal verde que até então ele só conhecia de vista. Era um homem gordo, muito aromático, sorridente, com brilhantes nos dedos. Olhou para o Adérito com intensidade, como se quisesse ler-lhe os pensamentos.
-Sabe por que o mandei chamar?
Mas o Adérito não sabia. Também não tinha pensamentos. Estava sentado na borda da poltrona e tinha as mãos sobre os joelhos unidos, respeitosamente unidos. Esperava.
O diretor pôs-se a falar. Que a direção reconhecia o seu valor, a sua dedicação à casa, o seu amor ao trabalho. Como já devia ter ouvido, o Banco ia ter uma sucursal em Lourenço Marques. O caso era que a direção tinha pensado nele, Adérito, para a dirigir, enfim, para gerir. Seria, claro, aumentado. Atrevia-se mesmo a assegurar-lhe que teria um aumento considerável... Considerável... Enfim, uma situação muitíssimo vantajosa. Sem falar no prestígio. Mas que pensasse, pensasse depois lhe diria se aceitava ou não.
O Adérito não pensou, ou melhor, pensou muito pouco. Também não falou daquilo à mulher porque ela não saberia compreende a resolução que tinha tomado, ainda o diretor lhe estava a expor o caso. Sempre sonhara ser uma senhora, coitada. Uma senhora como ela era capaz de ambicionar. Com muitos chapéus, muitos vestidos e muitos bolos para oferecer às visitas. Mulher dum gerente numa cidade colonial... Nunca lhe perdoaria a recusa, claro. Falou ao diretor na saúde da mulher, no seu próprio fígado, muito sensível. Tudo mentira, naturalmente. Por que então, por quê? Nem ele próprio sabia. E daí talvez, pensando bem. Talvez porque havia pessoas que sonhavam e viviam ao mesmo tempo, os homens negros dos barcos, os atores e as atrizes que ele via ao sábado à noite no cinema do bairro, e ele se habituara a sonhar e a viver.Talvez fosse por isso. Agora era tarde, demasiado tarde. Já não saberia viver um sonho. Sentia-se velho, horrivelmente velho e cansado, muito, muito cansado. Muito triste também.
Foi o Costa quem um dia partiu, num bonito paquete. No cais, o Adérito tinha os olhos bem abertos e sentia uma grande, uma enorme angústia. Deixou-se ficar até o barco se diluir todo no nevoeiro espesso que nessa manhã cobria o Tejo. Depois ainda deu um salto ao aeroporto a ver sair os aviões.

Maria Judite de Carvalho