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sábado, 20 de outubro de 2007

"Minha pátria é a língua Portuguesa"



"A minha pátria é a língua portuguesa", disse o mestre Fernando Pessoa e faço minhas suas palavras. A identificação que tenho com artistas lusófonos é tamanha que sinto próximo a mim qualquer pessoa que tenha como língua-materna a "última flor do Lácio" de Olavo Bilac. Sou um apaixonado declarado pela língua Portuguesa, pelo seu som, pelo seu ritmo, pelos seus sotaques, pelos seus grandes artistas. Tanto que ao invés de escrever, vou hoje mostrar um pouco do som da lusofonia, de um grupo que mistura som e poesia e traz em si o que a nossa música tem de melhor: o fado português, a Música Popular Brasileira, as músicas pop e erudita contemporênas, as músicas populares ibéricas... dessa mistura, e da voz da inigualável Teresa Salgueiro, surge a poesia musical que marca o grupo lusófono incomparável "Madredeus"


Aqui o link para o vídeo "Haja o que houver". Sinta-o:




"Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha."


Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Gavetas


Não fui trabalhar hoje. Fiquei em casa. Quase nunca faço isso e aproveitei para arrumar algumas gavetas de papéis, cartas, fotos e toda e qualquer coisa possível de ser guardada e que eu ainda não havia jogado fora em minhas faxinas reflexivas anteriores. Um dia ainda vou defender uma tese sobre o efeito que uma gaveta sendo arrumada pode causar em nossa cabeça. Na minha pelo menos causa. Imagino o título já, com retoques de pseudo-erudição: “A influência do ato de arrumar gavetas na desorganizada mente humana”. Tão ridículo, quanto patético, fruto de uma imaginação tão fértil quanto sarcástica. Se eu fosse conhecido ganharia o igNobel pela irrelevância dessa pesquisa para a humanidade ... tão relevante quanto a pesquisa de um biólogo norueguês que escreveu sua tese acerca do efeito da cerveja, alho e creme azedo sobre o apetite dos piolhos ou do lituano que recebeu o igNobel da Paz por criar o parque temático “O mundo de Stálin” ...
Divagações e parênteses à parte é certo que me sinto muito bem quando vou às dezenas de gavetas de papéis do meu quarto e começo a arrumá-las, metodicamente classsificá-las e rearrumá-las ... há verdadeiramente uma sensação de organização mental.
Tenho uma caixa com cartões que recebi nos últimos doze anos. Cartões de Natal, quando eu ainda gostava de Natal. Cartões de aniversário de amigos que ainda conservo e de alguns que me lembro com carinho, mas que perdi completamente o contato. Mensagens que me fazem refletir sobre um tempo em que ainda sonhava em mudar o mundo e que tinha sonhos que ainda conservo que visualizo hoje com lentes de maior realidade. Encontrei textos que escrevi há anos, encontrei todo e qualquer ingresso de parques, museus, shows e festas que fui nos últimos anos ... revirar essa caixa para mim é como reviver toda uma vida.
Passei para as mais de mil cartas que meus 10 anos de correspondência com o mundo produziram ... li alguma que me tocavam mais, como a carta de uma amiga italiana que continha um lindíssimo cartão por ocasião dos meus 18 anos, relembrei com carinho meus amigos tão queridos que eu nunca encontrei e que sempre sonhei encontrar: Clara Wella, Benjamin Manav, Jana Kunstek, Rosi Pagani, Zita Grineviciute, Juan Jiménez, Inna Lapis entre tantos outros ... por anos dividi meu mundo com todas essas pessoas e compreendi o quanto somos cidadãos de um mundo só. Eu cresci, dividindo as mesmas indagações, protestos e alegrias que jovens dos quatro cantos do mundo ... isso me ajudou muito a quebrar barreiras de preconceito, um preconceito de quem sempre acha o outro diferente por algo, quando na verdade sempre fomos todos tão iguais além da casca chamada “cultura” que aprendemos cada qual no meio em que vivemos.
Remexi, por fim em fotografias. Há umas cinco gavetas específicas para elas, devido à quantidade da era pré-digital. Arrumei primeiro um grande lote de fotos antigas da família do meu pai, com rostos irreconhecíveis para qualquer pessoa hoje. Eram fotos enviadas por parentes na Itália na década de 30, com dedicatórias em italiano no verso. Fotos tiradas no Brasil, em lugares que eu nem imagino, mas que gosto de olhar e imaginar o exato momento em que aqueles rostos foram imortalizados. Será que eles imaginavam que 80 anos depois alguém olharia para a foto deles e se perguntariam quem eram ou que pensavam?
Passei para um bloco de fotos mais numerosas, cujos rostos expressos me eram familiares ... eu me dediquei em especial, de maneira egocêntrica, às minhas fotos: centenas delas! E imaginei o que pensariam os meus futuros parentes dentro de 80 anos ao observarem meu rosto. Passei pelas minhas fotos de bebê, de cabelo castanho-claro (e testa proeminente!) e olhos já bastante escuros, apesar da tendência familiar que acompanhou muitos de meus primos a terem olhos azuis! Vi minhas fotos de escola, meus primeiros óculos (enormes por sinal), depois vieram fotos de adolescência, época em que eu menos me registrei por odiar minha aparência. Dessa época guardo mais textos que imagens ... eu era bastante revolucionário e sinto falta dos meus sonhos de então. Continuei pelas fotos de viagens (que saudades da França!), fotos da faculdade, fotos com amigos, com a família ... eu revivi minha história. Recontei fatos a mim mesmo e fiquei feliz por me convencer que eles realmente aconteceram da maneira que eu os recriei. Senti que eu já não era mais o adolescente que criticava o sistema sem ser socialista; que abominava a hipocrisia do Vaticano, mas freqüentava a igreja; que admirava profundamente a Itália e sonhava um dia viver lá como no tempo dos antepassados; que lia o jornal todos os dias e ficava feliz quando ia chover no norte do estado de São Paulo; que guardava uma paixão pelo povo judeu até hoje inexplicável ... e que sonhava mais do que vivia.
Eu recoloquei tudo no lugar, reclassifiquei com método cada gaveta e meus pensamentos foram sistematicamente sendo ajustados. Não pretendo defender nenhuma tese, mas não poderia ter escolhido uma ocupação melhor. Isso me fez tão bem! Mal posso esperar para que minhas gavetas estejam de novo em desordem, com cadernos, fotos, textos e tudo mais um pouco fora de lugar. Se isso demorar, eu sempre posso inventar uma nova maneira de classificar as coisas para poder olhá-las uma a uma e reclassificá-las no lugar que lhes é cabível. E passarei uma tarde nostálgica, com saudades até, de um tempo bem vivido e de um tempo bom, sendo vivido.


Imagem: Quadro de Salvador Dalí, cujo nome desonheço

Sílvio Fiorani: Meu tipo inesquecível


Há alguns escritores com o qual nos identificamos desde o início. No caso de Sílvio Fiorani, me chamou a atenção já em uma primeira leitura a sua maneira simples, mas tocante de construir sua ficção. Mais do que isso, apesar de aprendermos a separar o caráter biográfico e referencial dos autores na sua prosa, é inegável a influência que ele carrega, fato que se expressa vivamente em suas obras. Sílvio Fiorani assim como eu, é um oriundi, de família ítalo-brasileira e nasceu aqui no norte do estado de São Paulo, bem próximo de minha cidade, o que o faz caipira como eu também. Não pude deixar de me ver em suas obras, em especial no romance, e me sinto honrado em publicar hoje em meu blog um conto escrito por esse brilhante artista, vencedor do Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, em 2006, pelo romance “Investigação sobre Ariel”
Apresento a quem ainda não conhece, o Sr. Sílvio Fiorani:

Meu tipo inesquecível

"Faz tempo que eu quero escrever para a senhora, mas o pessoal aqui de casa não deixa, todos acham que é uma tolice, uma loucura, uma loucura, dizem isso mesmo. Escrever para uma pessoa da televisão, ridículo. Seriam capazes de não me deixar ir ao correio pôr esta carta, seriam capazes não, não me deixariam mesmo, esta a verdade, pois dizem isso claramente e eu tenho que ficar calada, me conformar, prometer que não vou botar carta nenhuma no correio, com medo que eles me tirem a televisão, assim fico sem ver o seu programa que é a maior alegria que eu tenho nesta vida, sendo o seu o único programa que eu vejo sozinha, sem ninguém pra atrapalhar, pois de tarde está todo mundo trabalhando e eu apresso minhas tarefas, sou uma velha que não serve senão para limpar a casa, para eles sujarem de noite, para eu limpar no dia seguinte, e assim para todo o sempre, eternamente até que eu morra, ai vão sentir minha falta, aí sim é que eu vou querer ver, mas como estava dizendo, eu apresso minhas tarefas para ter a tarde livre, para sossegadamente ver o seu programa que a senhora não sabe tem sido de muita valia para mim, meu refrigério, uma grande consolação, é como se a senhora fosse minha amiga de verdade, minha amiga a senhora sempre diz, os seus conselhos são os conselhos que eu sempre quis ouvir, como a senhora sabe compreender as mulheres e os velhos, os idosos como a senhora sempre diz, como a senhora sabe compreender as crianças, e as moças solteiras desnorteadas, e as mal casadas, e as outras, e as domésticas, os paralíticos, os bêbados, bem, estou dizendo tudo isso que é claro como o dia e estou deixando de lado o principal, a verdadeira razão desta carta que eu tanto quis escrever e pôr no correio sem que eles soubessem, porque a grande razão destas linhas, o principal de tudo mesmo é que eu vejo a senhora todos os dias, sem faltar um programa, não tiro os olhos da televisão por nada deste mundo, me caia a casa em cima, caia o mundo, digo mais uma vez, não tiro os olhos da senhora um instante, vejo a senhora todo santo dia, e agora queria muito, mas muito mesmo saber, isto é muito importante para mim, pode dizer a verdade, seja franca como só a senhora sabe ser, eu vejo a senhora todos os dias, e a senhora?, pode dizer francamente, a senhora me vê?"

O presente texto faz parte de “Os Estandartes de Átila”, de 1980

domingo, 7 de outubro de 2007

Os Ombros Suportam o Mundo


O que fazer quando se quer escrever algo para postar e a inspiração não vem, aliada ao calor de outubro? Bem, procura-se um grande autor e coloca-se na íntegra um poema ou conto o qual se tenha afinidade. Nesse caso, o espaço não poderia ser melhor aproveitado que com um poema de Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores poetas lusófonos de todos os tempos. Eis então um pedaço de sua criação:


Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teu ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade