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domingo, 12 de agosto de 2007

Identidade


Eu leio, eu ouço, eu vejo, eu penso: em tempos cada vez mais globalizados em que se demonstra uma uniformização de costumes e identidades, parece cada vez menos importante se auto-afirmar, procurar uma raiz no qual se fincar. Eu encaro pelo lado oposto, se tomarmos somente o Ocidente, supostamente uniformizado, vemos tantas diferenças, tantas quantas vemos se tomarmos apenas o Brasil. De alguma forma as pessoas procuram uma identidade para se firmar mesmo que se sintam cidadãos do mundo. Ora, caminhar o tempo todo entre o individual e o universal é uma tarefa deliciosamente complicada ... dessa maneira, aproveitei algumas reflexões que fiz em um texto há algum tempo em busca de minha identidade
Sou brasileiro, nascido em terras tupiniquins. OK. Isso somente não basta, a busca da identidade chega quase ao nível individual. Identifico-me com os outros brasileiros principalmente pela língua que temos em comum, pois, convenhamos, tenho culturalmente muitas diferenças com um germânico catarinense, um ribeirinha amazônico ou um sertanejo potiguar ... são realidades muito diferentes da minha, formações histórico-culturais muito únicas, como já escreveu Darcy Ribeiro. Sendo assim. defino-me inicialmente como paulista interiorano, simplesmente conhecido como “caipira”.
Partindo desse princípio, discuto sobre essa minha identidade interiorana: É certo que já ouvimos a palavra “caipira” ser utilizada de maneira pejorativa. A maioria das pessoas jamais se assumiria caipira. Na verdade, poucas pessoas atualmente se auto-proclamam como tal e se orgulham disso. Nega-se as suas próprias origens, quando na verdade, deveria -se orgulhar muito delas. A nossa história é uma história de coragem e a nossa cultura, embora hoje bastante descaracterizada, é única. Franceses se orgulham de sua origem celta, mesmo que hoje pouco ou nada tenha restado desta herança ... caipiras do mundo, orgulhem-se uai!
O povo caipira se formou a partir da mestiçagem iniciada a partir da subida dos portugueses da Serra do Mar e do início das investidas bandeirantes pelo interior ... não entrando no mérito histórico da questão, a partir daí os brancos portugueses, os índios locais, que iam sendo gradativamente dizimados e posteriormente o elemento negro formou esse embrião, essa salada de culturas que foi moldando a cultura do interior paulista, acrescida pela chegada de milhões de imigrantes que ao contrário do ocorrido no Sul se mesclaram com a população local, bem como os migrantes vindos de outras regiões brasileiras. Com o desenvolvimento da região, o interior foi se urbanizando e a cultura caipira foi perdendo suas características. As canções melodiosas que retratavam o cotidiano camponês deram lugar a músicas românticas que nada lembram a “real cultura sertaneja” e as cidades ganharam inspiração texana influenciadas pela cultura norte-americana. A cultura caipira foi sendo aos poucos esquecida e mesmo depreciada. “Caipira” virou sinônimo de brega, atrasado, quando na verdade deveria remeter a um povo que tem toda uma história a se orgulhar. Um povo formado desde o início por gente corajosa: bandeirantes que desbravavam regiões selvagens, imigrantes que cruzaram o oceano em busca de oportunidades em terras desconhecidas, brasileiros que deixavam suas regiões em busca de uma vida melhor. Com uma história tão gloriosa e uma cultura tão rica porque se envergonhar de ser caipira? Antes, deveríamos resgatar o real sentido que essa palavra traz. O sentido positivo, o de ser paulista do interior, que mesmo não vivendo no dia-a-dia essa cultura em si, infelizmente bastante desgastada, a respeita e contribui para que ela continue viva.
Minha identidade caipira, de pais e avós nascidos na roça, de sangue luso-italiano, me faz saber quem eu sou em um mundo em que as culturas locais perdem força em detrimento a uma cultura globalizada. Sou orgulhoso de minha origem luso-ítalo-caipira e isso me faz criar raízes e me identificar no mundo e mesmo dentro do meu país. O fanatismo com relação à própria identidade cultural é algo perigoso, mas a não-identificação é tão perigosa quanto. Não se trata de rotular, mas de se reconhecer. Como já disse anteriormente, em detrimento de qualquer outra coisa, o auto-conhecimento é fundamental, e isso implica unir os planos individual e coletivo, já que a junção de ambos converge para aquilo que inegavelmente somos.

Romaria (Renato Teixeira)

É de sonho e de pó
O destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre meu cavaloÉ de laço e de nó
De jibeira o jiló
Dessa vida
Cumprida a só

(Refrão)
Sou caipira, pirapora,
NossaSenhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
O meu pai foi peão
Minha mãe solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
À custa de aventuras
Descasei, joguei
Investi, desisti
Se há sorte, eu não sei, nunca vi

Me disseram, porém
Que eu viesse aqui
Pra pedir deRomaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar


Foto: “Paisagem rural” do pintor primitivista rio-pretense, caipira de alma, José Antônio da Silva.

sábado, 4 de agosto de 2007

Não tenho dó das estrelas


Tenho dó das estrelas

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço,

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser.
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim,
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Fernando Pessoa


Não tenho dó das estrelas ... eu apenas as admiro.
"Noite estrelada sobre o Ródano", de Vincent Van Gogh (1888)