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sábado, 15 de novembro de 2008

Poesia lusófona - Carlos Drummond de Andrade


Depois de um significativo afastamento de meu blog, senti uma certa saudade ... na verdade, ao olhar para a tela não me ocorria nada para atualizá-lo, até que a própria palavra "saudade" o fez: Nada mais único do mundo lusófono que esse termo que só nós brasileiros, portugueses, angolanos, enfim, falantes nativos do Português entendemos ... sentir saudade! Então, inspirado pelo termo, decidi publicar poesias de grandes lusófonos até que minha inspoiração surja ... e garanto que a publicação desses não será um mero preenchimento de espaço em branco ... tanto que começos com nada menos que o mineiro Carlos Drummond de Andrade e um de seus maiores peomas: A máquina do mundo. Voilà:


A Máquina do mundo


E como eu palmilhasse vagamente

uma estrada de Minas, pedregosa,

e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos

que era pausado e seco; e aves pairassem

no céu de chumbo, e suas formas pretas


lentamente se fossem diluindo

na escuridão maior, vinda dos monte

se de meu próprio ser desenganado,


a máquina do mundo se entreabriu

para quem de a romper já se esquivava

e só de o ter pensado se carpia.


Abriu-se majestosa e circunspecta,

sem emitir um som que fosse impuro

nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspeção

contínua e dolorosa do deserto,

e pela mente exausta de mentar


toda uma realidade que transcende

a própria imagem sua debuxada

no rosto do mistério, nos abismos.


Abriu-se em calma pura, e convidando

quantos sentidos e intuições restavam

a quem de os ter usado os já perdera


e nem desejaria recobrá-los,

se em vão e para sempre repetimos

os mesmos sem roteiro tristes périplos,


convidando-os a todos, em coorte,

a se aplicarem sobre o pasto inédito

da natureza mítica das coisas,


assim me disse, embora voz alguma

ou sopro ou eco ou simples percussão

atestasse que alguém, sobre a montanha,


a outro alguém, noturno e miserável,

em colóquio se estava dirigindo:"

O que procuraste em ti ou fora de


teu ser restrito e nunca se mostrou,

mesmo afetando dar-se ou se rendendo,

e a cada instante mais se retraindo,


olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,


essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

que nem concebes mais, pois tão esquivo


se revelou ante a pesquisa ardente

em que te consumiste... vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo.”


As mais soberbas pontes e edifícios,

o que nas oficinas se elabora,

o que pensado foi e logo atinge


distância superior ao pensamento,

os recursos da terra dominados,

e as paixões e os impulsos e os tormentos


e tudo que define o ser terrestre

ou se prolonga até nos animais

e chega às plantas para se embeber


no sono rancoroso dos minérios,

dá volta ao mundo e torna a se engolfar,

na estranha ordem geométrica de tudo,


e o absurdo original e seus enigmas,

suas verdades altas mais que todos

monumentos erguidos à verdade:


e a memória dos deuses, e o solenes

entimento de morte, que floresce

no caule da existência mais gloriosa,


tudo se apresentou nesse relance

e me chamou para seu reino augusto,

afinal submetido à vista humana.


Mas, como eu relutasse em responder

a tal apelo assim maravilhoso,

pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,


a esperança mais mínima — esse anelo

de ver desvanecida a treva espessa

que entre os raios do sol inda se filtra;


como defuntas crenças convocadas

presto e fremente não se produzissem

a de novo tingir a neutra face


que vou pelos caminhos demonstrando,

e como se outro ser, não mais aquele

habitante de mim há tantos anos,


passasse a comandar minha vontade

que, já de si volúvel, se cerrava

semelhante a essas flores reticentes


em si mesmas abertas e fechadas;

como se um dom tardio já não fora

apetecível, antes despiciendo,


baixei os olhos, incurioso, lasso

,desdenhando colher a coisa oferta

que se abria gratuita a meu engenho.


A treva mais estrita já pousara

sobre a estrada de Minas, pedregosa,

e a máquina do mundo, repelida,


se foi miudamente recompondo,

enquanto eu, avaliando o que perdera,

seguia vagaroso, de mãos pensas.


Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”.