Passagens por aqui ...

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Como é distante o país dos sonhos


É incrível como até certo ponto de nossa vida, os sonhos nos parecem palpáveis, por mais distante que pareçam e por mais altos que sejam. Perguntam-nos o que gostaríamos de ser quando crescer: respondemos que queremos ser as coisas mais incríveis, desde astronautas até arqueólogos, como se realizar sonhos como esses dependessem pura e simplesmente de crescer. Não quero parecer pessimista, mas a realidade bate à nossa porta cedo ou tarde e os sonhos vão sendo deixados de lado ou adiados, pois percebemos que a realidade não comporta a esmagadora maioria das vezes a grandiosidade de nossos sonhos. Ao menos constato que os meus não.
Na adolescência, se temos alguma convicção política, sonhamos em mudar o mundo: conseguiremos acabar com a destruição da Amazônia, garantir a paz no Oriente Médio, descobrir a cura da AIDS ou acabar com a fome no Terceiro Mundo. Somos mais realistas com nossos sonhos e ao crescer, nos deparamos com caminhos que nos levam a escolhas e conseqüentemente à desistência de alguns desses sonhos ... para alguns, o eterno amor está prestes a chegar da maneira mais “hollywoodiana” possível ... alguns ainda esperam por isso
Com o tempo, percebe-se que a realidade é um pouco diferente e que o país dos sonhos é um local cujo visto de entrada pode ser negado facilmente ou às vezes nós mesmo paramos ainda na alfândega ... a viagem pode parecer muito longa.
Confesso que às vezes penso que esse país é uma forma utópica de convencermos a nós mesmos que a vida não é tão dura assim. Afinal de contas nada seria tão cruel que bombardear uma criança de realidade e privá-la de sonhar. Uma coisa é certa: mesmo desistindo de alguns sonhos pela circunstâncias que nos são impostas, eles têm que existir. O contrário seria o caos.
Assim, dirijo-me ao consulado mais próximo e esse período de espera pelo visto de entrada funcionará como alento para essa árdua espera. Eu me pergunto: que tempo deve estar fazendo agora no país dos sonhos? Preciso me preparar, já que uma viagem tão longa, deve ser bem planejada ... se bem que não custa nada sonhar sob a chuva ou vendo cair a neve.

Imagem: "O sonho", de 1910, do pintor primitivista francês Henri Rousseau

sábado, 20 de outubro de 2007

"Minha pátria é a língua Portuguesa"



"A minha pátria é a língua portuguesa", disse o mestre Fernando Pessoa e faço minhas suas palavras. A identificação que tenho com artistas lusófonos é tamanha que sinto próximo a mim qualquer pessoa que tenha como língua-materna a "última flor do Lácio" de Olavo Bilac. Sou um apaixonado declarado pela língua Portuguesa, pelo seu som, pelo seu ritmo, pelos seus sotaques, pelos seus grandes artistas. Tanto que ao invés de escrever, vou hoje mostrar um pouco do som da lusofonia, de um grupo que mistura som e poesia e traz em si o que a nossa música tem de melhor: o fado português, a Música Popular Brasileira, as músicas pop e erudita contemporênas, as músicas populares ibéricas... dessa mistura, e da voz da inigualável Teresa Salgueiro, surge a poesia musical que marca o grupo lusófono incomparável "Madredeus"


Aqui o link para o vídeo "Haja o que houver". Sinta-o:




"Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha."


Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Gavetas


Não fui trabalhar hoje. Fiquei em casa. Quase nunca faço isso e aproveitei para arrumar algumas gavetas de papéis, cartas, fotos e toda e qualquer coisa possível de ser guardada e que eu ainda não havia jogado fora em minhas faxinas reflexivas anteriores. Um dia ainda vou defender uma tese sobre o efeito que uma gaveta sendo arrumada pode causar em nossa cabeça. Na minha pelo menos causa. Imagino o título já, com retoques de pseudo-erudição: “A influência do ato de arrumar gavetas na desorganizada mente humana”. Tão ridículo, quanto patético, fruto de uma imaginação tão fértil quanto sarcástica. Se eu fosse conhecido ganharia o igNobel pela irrelevância dessa pesquisa para a humanidade ... tão relevante quanto a pesquisa de um biólogo norueguês que escreveu sua tese acerca do efeito da cerveja, alho e creme azedo sobre o apetite dos piolhos ou do lituano que recebeu o igNobel da Paz por criar o parque temático “O mundo de Stálin” ...
Divagações e parênteses à parte é certo que me sinto muito bem quando vou às dezenas de gavetas de papéis do meu quarto e começo a arrumá-las, metodicamente classsificá-las e rearrumá-las ... há verdadeiramente uma sensação de organização mental.
Tenho uma caixa com cartões que recebi nos últimos doze anos. Cartões de Natal, quando eu ainda gostava de Natal. Cartões de aniversário de amigos que ainda conservo e de alguns que me lembro com carinho, mas que perdi completamente o contato. Mensagens que me fazem refletir sobre um tempo em que ainda sonhava em mudar o mundo e que tinha sonhos que ainda conservo que visualizo hoje com lentes de maior realidade. Encontrei textos que escrevi há anos, encontrei todo e qualquer ingresso de parques, museus, shows e festas que fui nos últimos anos ... revirar essa caixa para mim é como reviver toda uma vida.
Passei para as mais de mil cartas que meus 10 anos de correspondência com o mundo produziram ... li alguma que me tocavam mais, como a carta de uma amiga italiana que continha um lindíssimo cartão por ocasião dos meus 18 anos, relembrei com carinho meus amigos tão queridos que eu nunca encontrei e que sempre sonhei encontrar: Clara Wella, Benjamin Manav, Jana Kunstek, Rosi Pagani, Zita Grineviciute, Juan Jiménez, Inna Lapis entre tantos outros ... por anos dividi meu mundo com todas essas pessoas e compreendi o quanto somos cidadãos de um mundo só. Eu cresci, dividindo as mesmas indagações, protestos e alegrias que jovens dos quatro cantos do mundo ... isso me ajudou muito a quebrar barreiras de preconceito, um preconceito de quem sempre acha o outro diferente por algo, quando na verdade sempre fomos todos tão iguais além da casca chamada “cultura” que aprendemos cada qual no meio em que vivemos.
Remexi, por fim em fotografias. Há umas cinco gavetas específicas para elas, devido à quantidade da era pré-digital. Arrumei primeiro um grande lote de fotos antigas da família do meu pai, com rostos irreconhecíveis para qualquer pessoa hoje. Eram fotos enviadas por parentes na Itália na década de 30, com dedicatórias em italiano no verso. Fotos tiradas no Brasil, em lugares que eu nem imagino, mas que gosto de olhar e imaginar o exato momento em que aqueles rostos foram imortalizados. Será que eles imaginavam que 80 anos depois alguém olharia para a foto deles e se perguntariam quem eram ou que pensavam?
Passei para um bloco de fotos mais numerosas, cujos rostos expressos me eram familiares ... eu me dediquei em especial, de maneira egocêntrica, às minhas fotos: centenas delas! E imaginei o que pensariam os meus futuros parentes dentro de 80 anos ao observarem meu rosto. Passei pelas minhas fotos de bebê, de cabelo castanho-claro (e testa proeminente!) e olhos já bastante escuros, apesar da tendência familiar que acompanhou muitos de meus primos a terem olhos azuis! Vi minhas fotos de escola, meus primeiros óculos (enormes por sinal), depois vieram fotos de adolescência, época em que eu menos me registrei por odiar minha aparência. Dessa época guardo mais textos que imagens ... eu era bastante revolucionário e sinto falta dos meus sonhos de então. Continuei pelas fotos de viagens (que saudades da França!), fotos da faculdade, fotos com amigos, com a família ... eu revivi minha história. Recontei fatos a mim mesmo e fiquei feliz por me convencer que eles realmente aconteceram da maneira que eu os recriei. Senti que eu já não era mais o adolescente que criticava o sistema sem ser socialista; que abominava a hipocrisia do Vaticano, mas freqüentava a igreja; que admirava profundamente a Itália e sonhava um dia viver lá como no tempo dos antepassados; que lia o jornal todos os dias e ficava feliz quando ia chover no norte do estado de São Paulo; que guardava uma paixão pelo povo judeu até hoje inexplicável ... e que sonhava mais do que vivia.
Eu recoloquei tudo no lugar, reclassifiquei com método cada gaveta e meus pensamentos foram sistematicamente sendo ajustados. Não pretendo defender nenhuma tese, mas não poderia ter escolhido uma ocupação melhor. Isso me fez tão bem! Mal posso esperar para que minhas gavetas estejam de novo em desordem, com cadernos, fotos, textos e tudo mais um pouco fora de lugar. Se isso demorar, eu sempre posso inventar uma nova maneira de classificar as coisas para poder olhá-las uma a uma e reclassificá-las no lugar que lhes é cabível. E passarei uma tarde nostálgica, com saudades até, de um tempo bem vivido e de um tempo bom, sendo vivido.


Imagem: Quadro de Salvador Dalí, cujo nome desonheço

Sílvio Fiorani: Meu tipo inesquecível


Há alguns escritores com o qual nos identificamos desde o início. No caso de Sílvio Fiorani, me chamou a atenção já em uma primeira leitura a sua maneira simples, mas tocante de construir sua ficção. Mais do que isso, apesar de aprendermos a separar o caráter biográfico e referencial dos autores na sua prosa, é inegável a influência que ele carrega, fato que se expressa vivamente em suas obras. Sílvio Fiorani assim como eu, é um oriundi, de família ítalo-brasileira e nasceu aqui no norte do estado de São Paulo, bem próximo de minha cidade, o que o faz caipira como eu também. Não pude deixar de me ver em suas obras, em especial no romance, e me sinto honrado em publicar hoje em meu blog um conto escrito por esse brilhante artista, vencedor do Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, em 2006, pelo romance “Investigação sobre Ariel”
Apresento a quem ainda não conhece, o Sr. Sílvio Fiorani:

Meu tipo inesquecível

"Faz tempo que eu quero escrever para a senhora, mas o pessoal aqui de casa não deixa, todos acham que é uma tolice, uma loucura, uma loucura, dizem isso mesmo. Escrever para uma pessoa da televisão, ridículo. Seriam capazes de não me deixar ir ao correio pôr esta carta, seriam capazes não, não me deixariam mesmo, esta a verdade, pois dizem isso claramente e eu tenho que ficar calada, me conformar, prometer que não vou botar carta nenhuma no correio, com medo que eles me tirem a televisão, assim fico sem ver o seu programa que é a maior alegria que eu tenho nesta vida, sendo o seu o único programa que eu vejo sozinha, sem ninguém pra atrapalhar, pois de tarde está todo mundo trabalhando e eu apresso minhas tarefas, sou uma velha que não serve senão para limpar a casa, para eles sujarem de noite, para eu limpar no dia seguinte, e assim para todo o sempre, eternamente até que eu morra, ai vão sentir minha falta, aí sim é que eu vou querer ver, mas como estava dizendo, eu apresso minhas tarefas para ter a tarde livre, para sossegadamente ver o seu programa que a senhora não sabe tem sido de muita valia para mim, meu refrigério, uma grande consolação, é como se a senhora fosse minha amiga de verdade, minha amiga a senhora sempre diz, os seus conselhos são os conselhos que eu sempre quis ouvir, como a senhora sabe compreender as mulheres e os velhos, os idosos como a senhora sempre diz, como a senhora sabe compreender as crianças, e as moças solteiras desnorteadas, e as mal casadas, e as outras, e as domésticas, os paralíticos, os bêbados, bem, estou dizendo tudo isso que é claro como o dia e estou deixando de lado o principal, a verdadeira razão desta carta que eu tanto quis escrever e pôr no correio sem que eles soubessem, porque a grande razão destas linhas, o principal de tudo mesmo é que eu vejo a senhora todos os dias, sem faltar um programa, não tiro os olhos da televisão por nada deste mundo, me caia a casa em cima, caia o mundo, digo mais uma vez, não tiro os olhos da senhora um instante, vejo a senhora todo santo dia, e agora queria muito, mas muito mesmo saber, isto é muito importante para mim, pode dizer a verdade, seja franca como só a senhora sabe ser, eu vejo a senhora todos os dias, e a senhora?, pode dizer francamente, a senhora me vê?"

O presente texto faz parte de “Os Estandartes de Átila”, de 1980

domingo, 7 de outubro de 2007

Os Ombros Suportam o Mundo


O que fazer quando se quer escrever algo para postar e a inspiração não vem, aliada ao calor de outubro? Bem, procura-se um grande autor e coloca-se na íntegra um poema ou conto o qual se tenha afinidade. Nesse caso, o espaço não poderia ser melhor aproveitado que com um poema de Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores poetas lusófonos de todos os tempos. Eis então um pedaço de sua criação:


Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teu ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.


Carlos Drummond de Andrade

sábado, 22 de setembro de 2007

Peanuts ...

Hoje vamos rever um pouco os Peanuts ... personagens memoráveis como o garoto Charlie Brown e o seu cachorrinho Snoopy, criações do americano Charles Schulz. A melancolia e realidade de Charlie contrastam com os sonhos de Snoopy, um cão filosófico que tem como amigo um pássaro chamado Woodstock. Aqui temos alguns quadrinhos selecionados que mostram um pouco desses personagens que fizeram rir e se emocionar várias gerações de todo o planeta...




sábado, 15 de setembro de 2007

It's Garfield time!

Essa semana, após a delicadeza e doçura do Horácio, vamos ao sarcasmo e a boemia de Garfield, o gatinho laranja listrado, extremamente preguiçoso, parecido com muitos seres humanos reais que conhecemos. O tom filosófico é aqui suplantado pelo sarcasmo e o humor que por vezes se aproxima do humor-negro. Outro personagem memorável é Joe, “dono” de Garfield (ou seria o contrário?) que vive se metendo em enrascadas e sempre se dá mal com as mulheres. Garfield é obra do americano Jim Davis que o criou em 1978.

Ladies and gentlemen, Mr. Garfield!









Garfield em português na web:

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Somos todos minguantes ... a vez do Horácio

Setembro será com certeza um mês dedicado aos quadrinhos. A linguagem das tirinhas e de seus personagens formam uma nova e surpreendente forma de comunicação. Os quadrinhos são rápidos e diretos e sejam destinados às crianças ou aos adultos são um grande entretenimento. Na semana passada, postei algumas tiras da impetuosa e politizada garotinha argentina Mafalda ... agora posto apenas um quadrinho, daquele que considero o mais dode e filosófico personagem de HQ's brasileiro: o dinossaurinho Horácio, criação de Maurício de Souza. O próprio Maurício já declarou ser ele seu personagem predileto e declaro o mesmo a rspeito dessa criaturazinha adorável. Esse tironassurozinho verde é um grande sonhador ... e um grande sábio também. Abaixo, tomei a liberdade de deixar um link de um blog onde se vêem mais uma série de tirinhas do Horácio ...

Viva os sonhadores ... Allez les rêveurs!



Mais do Horácio: http://quadrinhosdohoracio.blogspot.com/

sábado, 1 de setembro de 2007

Un poquito más de Mafalda ...

Precisamos de umas Mafaldas no Brasil ... talvez a situação seja mais simples aqui que na Argentina em que ela vive ... pelo menos temos samba, Carnaval e somos penta-campeões mundias de futebol ...

Isso é bom, não é??





O jeito Mafalda de ver o mundo

Questionar o mundo é algo inato e profundamente necessário, creio eu. Então, porque não fazê-lo de forma bem humorada? É justamente o que faz Mafalda, criação do cartunista argentino Quino. Mafalda tem uma concepção de mundo muito clara e, sobretudo, crítica e enxergar a realidade sob sua ótica é profundamente interessante ...





Claro que não concordamos quanto à sopa, mas quanto aos Beatles ... oh, yes!

domingo, 12 de agosto de 2007

Identidade


Eu leio, eu ouço, eu vejo, eu penso: em tempos cada vez mais globalizados em que se demonstra uma uniformização de costumes e identidades, parece cada vez menos importante se auto-afirmar, procurar uma raiz no qual se fincar. Eu encaro pelo lado oposto, se tomarmos somente o Ocidente, supostamente uniformizado, vemos tantas diferenças, tantas quantas vemos se tomarmos apenas o Brasil. De alguma forma as pessoas procuram uma identidade para se firmar mesmo que se sintam cidadãos do mundo. Ora, caminhar o tempo todo entre o individual e o universal é uma tarefa deliciosamente complicada ... dessa maneira, aproveitei algumas reflexões que fiz em um texto há algum tempo em busca de minha identidade
Sou brasileiro, nascido em terras tupiniquins. OK. Isso somente não basta, a busca da identidade chega quase ao nível individual. Identifico-me com os outros brasileiros principalmente pela língua que temos em comum, pois, convenhamos, tenho culturalmente muitas diferenças com um germânico catarinense, um ribeirinha amazônico ou um sertanejo potiguar ... são realidades muito diferentes da minha, formações histórico-culturais muito únicas, como já escreveu Darcy Ribeiro. Sendo assim. defino-me inicialmente como paulista interiorano, simplesmente conhecido como “caipira”.
Partindo desse princípio, discuto sobre essa minha identidade interiorana: É certo que já ouvimos a palavra “caipira” ser utilizada de maneira pejorativa. A maioria das pessoas jamais se assumiria caipira. Na verdade, poucas pessoas atualmente se auto-proclamam como tal e se orgulham disso. Nega-se as suas próprias origens, quando na verdade, deveria -se orgulhar muito delas. A nossa história é uma história de coragem e a nossa cultura, embora hoje bastante descaracterizada, é única. Franceses se orgulham de sua origem celta, mesmo que hoje pouco ou nada tenha restado desta herança ... caipiras do mundo, orgulhem-se uai!
O povo caipira se formou a partir da mestiçagem iniciada a partir da subida dos portugueses da Serra do Mar e do início das investidas bandeirantes pelo interior ... não entrando no mérito histórico da questão, a partir daí os brancos portugueses, os índios locais, que iam sendo gradativamente dizimados e posteriormente o elemento negro formou esse embrião, essa salada de culturas que foi moldando a cultura do interior paulista, acrescida pela chegada de milhões de imigrantes que ao contrário do ocorrido no Sul se mesclaram com a população local, bem como os migrantes vindos de outras regiões brasileiras. Com o desenvolvimento da região, o interior foi se urbanizando e a cultura caipira foi perdendo suas características. As canções melodiosas que retratavam o cotidiano camponês deram lugar a músicas românticas que nada lembram a “real cultura sertaneja” e as cidades ganharam inspiração texana influenciadas pela cultura norte-americana. A cultura caipira foi sendo aos poucos esquecida e mesmo depreciada. “Caipira” virou sinônimo de brega, atrasado, quando na verdade deveria remeter a um povo que tem toda uma história a se orgulhar. Um povo formado desde o início por gente corajosa: bandeirantes que desbravavam regiões selvagens, imigrantes que cruzaram o oceano em busca de oportunidades em terras desconhecidas, brasileiros que deixavam suas regiões em busca de uma vida melhor. Com uma história tão gloriosa e uma cultura tão rica porque se envergonhar de ser caipira? Antes, deveríamos resgatar o real sentido que essa palavra traz. O sentido positivo, o de ser paulista do interior, que mesmo não vivendo no dia-a-dia essa cultura em si, infelizmente bastante desgastada, a respeita e contribui para que ela continue viva.
Minha identidade caipira, de pais e avós nascidos na roça, de sangue luso-italiano, me faz saber quem eu sou em um mundo em que as culturas locais perdem força em detrimento a uma cultura globalizada. Sou orgulhoso de minha origem luso-ítalo-caipira e isso me faz criar raízes e me identificar no mundo e mesmo dentro do meu país. O fanatismo com relação à própria identidade cultural é algo perigoso, mas a não-identificação é tão perigosa quanto. Não se trata de rotular, mas de se reconhecer. Como já disse anteriormente, em detrimento de qualquer outra coisa, o auto-conhecimento é fundamental, e isso implica unir os planos individual e coletivo, já que a junção de ambos converge para aquilo que inegavelmente somos.

Romaria (Renato Teixeira)

É de sonho e de pó
O destino de um só
Feito eu perdido em pensamentos
Sobre meu cavaloÉ de laço e de nó
De jibeira o jiló
Dessa vida
Cumprida a só

(Refrão)
Sou caipira, pirapora,
NossaSenhora de Aparecida
Ilumina a mina escura e funda
O trem da minha vida
O meu pai foi peão
Minha mãe solidão
Meus irmãos perderam-se na vida
À custa de aventuras
Descasei, joguei
Investi, desisti
Se há sorte, eu não sei, nunca vi

Me disseram, porém
Que eu viesse aqui
Pra pedir deRomaria e prece
Paz nos desaventos
Como eu não sei rezar
Só queria mostrar
Meu olhar, meu olhar, meu olhar


Foto: “Paisagem rural” do pintor primitivista rio-pretense, caipira de alma, José Antônio da Silva.

sábado, 4 de agosto de 2007

Não tenho dó das estrelas


Tenho dó das estrelas

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço,

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser.
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim,
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?

Fernando Pessoa


Não tenho dó das estrelas ... eu apenas as admiro.
"Noite estrelada sobre o Ródano", de Vincent Van Gogh (1888)

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Babel


Eu me vi hoje vivendo em uma Babel. Assisti ao filme do diretor Alejandro González-Iñárritu e confesso que fiquei impressionado, ao enxergar coisas de um foco até então não visto. Pessoas de diferentes “mundos”, falando diferentes línguas, com realidades sociais, econômicas e religiosas completamente diferentes ... e diante disto a grande questão é: Seriam elas capazes de se comunicar? A japonesa surda-muda, o casal de americanos em meio um suposto ataque terrorista no Marrocos, a babá ilegal mexicana cruzando a fronteira americana: Todos seriam capazes de dialogar? A questão é esquecer as “diferenças” e tentar chegar ao íntimo do outro em uma sociedade mundial globalizada que não nos permite isso. Valores individuais são positivos, contanto que não se leve isso à fronteira do egoísmo ... o ser humano não é uma ilha e pode chegar ao outro, pode compreender o outro. O grande problema de nossa Babel moderna não é fato de se falar em uma língua diferente, mas em se tentar compreender o outro apesar de qualquer coisa. A Babel do século XXI foi construída em sólidos alicerces e é bem difícil de ser destruída. Einstein disse que o ser humano chega até à Lua, mas não ao seu semelhante. Essa frase resume tudo ... A rica garota japonesa incompreendida em seu universo não se difere nem um pouco do garoto marroquino que usa a arma como um brinquedo... os seres humanos clamam por diálogo, por serem compreendidos, respeitados, seja em nível coletivo ou individual, conscientes ou não de sua condição. Nossa Babel continua crescendo e ao contrário de sua versão bíblica, a incompreensão não é uma barreira, mas um alicerce para o seu desenvolvimento.


"A Terra girou para nos aproximar
A Terra girou para nos aproximar,
girou ao redor de si mesma e dentro de nós,
até que finalmente nos uniu neste sonho
como foi escrito no Simpósio
Noites passaram, neves e solstícios;
O tempo passou em minutos e milênios
Uma carreta que ia para Nínive
Chegou a Nebraska.
Um galo cantava distante
Na pré-vida de nossos pais
A terra girou musicalmente
Levando-nos a bordo;
Não parou de girar um único momento,
Como se tanto amor, tanto milagre
era somente um provérbio escrito há muito tempo
entre as partituras do Simpósio"

(Eugenio Montejo - Caracas, Venezuela, 1938)

Foto: “A torre de Babel”, de Pieter Bruegel (1563)

domingo, 1 de julho de 2007

Joie de vivre


Às vezes sonhamos viver eternamente ... mas porquê será que às vezes uma tarde chuvosa de domingo parece demorar mais que uma eternidade a passar?
Na verdade somos criados para buscar grandes coisas enquanto a nossa “pérola”, como escreveu Steinbeck está bem ao nosso lado e não percebemos. Somos por demais ocupados para perceber o brilho de nossa pequena pérola bem próxima ... então saímos em busca dela, quando na verdade nos distanciamos cada vez mais.
Ao ver pela enésima vez o filme “O fabuloso destino de Amélie Poulain” não consigo deixar de pensar na maneira simples em que vivia a personagem central da história. Amélie se dedicava aos pequenos prazeres do dia-a-dia e eram esses que a faziam feliz. Como é bom caminhar pela manhã em uma bela estrada, olhar o céu à noite e esquecer o mundo, comer algo diferente que sempre quisemos experimentar, ler um bom livro, deixar a chuva de verão nos ensopar. Hoje tudo isso parece piegas, mas mesmo assim não nos prestamos a isso. A nós seres adultos e sérios tudo parece “efêmero” e “pequeno” demais quando na verdade essas pequenas peças formam o quebra-cabeça que tentamos montar em grandes blocos ...
Se pudesse dar um conselho a mim mesmo nessa tarde cinzenta de sábado seria: aproveite as pequenas coisas, pequenos momentos e lhes dê o verdadeiro valor. Estou aconselhando a mim mesmo agora e já estou abrindo a janela para deixar a brisa entrar.
Acho que estou indo no caminho certo ...

domingo, 24 de junho de 2007

Silêncio


O silêncio e o branco do papel expressam às vezes mais que palavras ditas ou textos escritos ...

Hoje eu não escrevo ... apenas observo

E sinto ...


Surdina - Cecília Meireles

Quem toca piano sob a chuva,
na tarde turva e despovoada?
De que antiga, límpida música
recebo a lembrança apagada

Minha vida, numa poltrona
jaz, diante da janela aberta
Vejo árvores, nuvens e a longa
rota do tempo, descoberta

Entre os meus olhos descansados
e os meus descansados ouvidos,
alguém colhe com dedos calmos
ramos de som descoloridos

A chuva interfere na música
Tocam tão longe! O turvo dia
mistura piano, árvore, nuvens,
séculos de melancolia


Foto: Moça na janela, de Salvador Dalí

sábado, 23 de junho de 2007

Liberdade


Já há algumas semanas eu me questiono cada vez mais sobre o sentido de palavras como justiça, liberdade e paz. Já há anos que eu me indigno com a humanidade e luto diariamente para que permaneça em mim esse sentimento de indignação. Há coisas que por mais comuns que pareçam, nunca devemos nos acostumar e devemos sempre manter vivo o sentimento de perplexidade. Desses pensamentos surgiram uma reflexão sobre a liberdade ...

Liberdade

A história da humanidade foi sempre marcada por lutas em prol da liberdade. Ainda hoje milhões de pessoas lutam por seus direitos em diversas partes do mundo. Parece incrível que em pleno século XXI seja ainda negada a tantas pessoas uma necessidade tão básica quanto a de ser livre. Há ainda muita luta a ser realizada, mas uma luta sem armas, tal qual fizeram alguns mártires que lutaram incessantemente pela liberdade em suas nações
Não poderia nunca deixar de citar inicialmente o grande Mahatma Gandhi, principal líder da independência indiana, que durante anos lutou contra o domínio britânico, realizando o que ficou conhecido como resistência passiva. Lutar por seus direitos sim, mas sem derramamento de sangue. Gandhi liderou em 1930 uma longa marcha em direção ao mar, de onde os indianos retiraram um pouco de sal em protesto aos altos impostos pagos sobre o sal que os ingleses retiravam da própria Índia. A marcha soa até mesmo poética e revela ideais de um espírito elevado, alguém para quem a liberdade só fazia sentido quando não dependesse da morte de outros seres humanos, tanto que Gandhi disse uma vez: “A vida é a maior de todas as artes”. Após a conquista da independência pela Índia em 1947, Gandhi foi assassinado por um nacionalista hindu que não aceitava, assim como milhões de indianos hindus, o diálogo estabelecido por Gandhi com os muçulmanos indianos.
Assim como Gandhi na Índia, o pastor negro Martim Luther King liderou uma resistência pacífica nos Estados Unidos a partir da década de 50, buscando os mesmos direitos aos negros que aqueles dados aos brancos. Na América concebida como um sonho de liberdade existia ainda em pleno século XX, uma parcela da população, os negros, que não gozavam do “sonho americano”. Luther King liderou protestos e boicotes a transportes públicos e estabelecimentos públicos no sul dos EUA, além de marchas que mobilizaram centenas de milhares de pessoas. Sua estratégia de luta pacífica resultou em 1964 na Lei dos Direitos Civis que deu aos negros americanos os mesmos direitos que os dados aos brancos. Em 1963, durante uma manifestação em Washington proferiu em seu discurso a sua mais famosa frase: “Eu tenho um sonho, que um dia meus quatro filhos possam viver em uma nação onde eles não sejam julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. Luther King foi assassinado por um branco em 1968.
Nelson Mandela foi tal qual Luther King um ativista pelos direitos dos negros. Na África do Sul sob o regime do apartheid, a minoria branca, que correspondia a pouco mais de 10% da população detinha os poderes e a economia do país e a maioria negra não possuía quaisquer direitos civis estabelecidos perante a Constituição. Nelson Mandela e outros líderes negros lideraram protestos e boicotes a exemplo de Gandhi e King e de forma pacífica lutaram pela igualdade racial em seu país. Mandela sofreu muito em nome de suas convicções, passando quase 30 anos preso, sendo libertado apenas em 1990, com o fim do regime. Alguns anos depois assumiu o governo de seu país, então uma democracia multirracial e é hoje uma das personalidades mais respeitadas do mundo.
O princípio da luta sem armas teve seu lugar também no Brasil, na figura de um homem que nem sempre é lembrado pelos próprios brasileiros, mas é internacionalmente reconhecido como um mártir: Chico Mendes. Esse líder seringueiro acreano lutou pelos direitos dos povos da floresta e contra o desmatamento da Amazônia, ideais que se chocavam com os interesses de alguns grupos poderosos de fazendeiros. Durante sua vida, Mendes denunciou diversas vezes agressões à floresta e por conta disso foi assassinado em 1988. Foi sem dúvida um dos maiores brasileiros e alguém que incondicionalmente lutou pelos direitos de seu povo.
Poderia-se citar ainda muitas lideranças, pessoas que lutaram incessantemente contra a injustiça e que tinham como princípio a paz. Em seus ideais estavam a justiça e a liberdade, nunca a morte e a violência. Gandhi, Luther King, Nelson Mandela e Chico Mendes foram certamente alguns dos maiores exemplos de que a paz deve ser alcançada a partir da paz. Ironicamente três deles foram assassinados e um passou ter décadas em uma prisão, pelo simples fato de lutarem em prol da liberdade. Talvez toda essa barbárie se explique pelo fato de grande parcela da humanidade não estar ainda preparada para encarar a paz como uma realidade cotidiana. A história do mundo foi construída sobre guerras e as civilizações foram plantadas sobre sangue. Em pleno século XXI a linguagem das armas é ainda a linguagem corrente. Em pleno século XXI líderes (líderes de fato?) vêem nas armas a grande maneira de “espalhar a liberdade”. Nada parece ser tão contraditório e tão desumano. Nada é mais triste do que constatar que em nome da liberdade tanto sangue se derrame ainda em nosso mundo “civilizado”.

Foto: Um chinês desconhecido barra os tanques que massacraram milhares de manifestantes na Praça da Paz Celestial em 1989. Longa vida aos heróis sem armas!

domingo, 10 de junho de 2007

Hoje


Hoje enxerguei o mundo com olhos estranhos. Hoje, mais que qualquer outra ocasião me inseri num recorte temporal e me vi sem referências. Hoje eu tentei enxergar a vida de forma como se eu nada conhecesse, sem lançar mão do meu conhecimento de mundo. Hoje eu experimentei o sentimento do não-pertencer, do não-compreender do não se importar. Ao contrário do que se possa pensar, não foi um dia ruim. Hoje desci do “leão que sempre cavalguei” como compôs Adriana Calcanhoto e me vi só, mas não solitário. Hoje tentei compreender o quão efêmera são as coisas e vi o quanto as linhas entre a alegria e a tristeza são cruzadas e não paralelas.
Hoje me sinto feliz. Poderia perguntar o porquê? Sim. Deveria? Não, claro.
Há coisas sobre o qual não se deve pensar, apenas sentir ... há muitos mistérios sobre o qual não se sabe e não vou citar Shakespeare para não cair no lugar-comum. Simplesmente existem coisas sobre o qual perde-se tempo em tentar achar um fio racional.
Hoje meus olhos foram tão longe, tão longe que chegaram o mais perto de mim que eu já pude chegar.
Hoje foi um dia sui generis.
Hoje senti o gostinho daquela famosa frase de Clarice Lispector "O melhor ainda não foi dito, o melhor ainda está nas entrelinhas".
Hoje penso no hoje.
Hoje me sinto sem raízes.
Hoje me sinto bem.


Inverno - Adriana Calcanhotto
Composição: Adriana Calcanhoto/Antonio Cícero


“No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial

Há algo que jamais se esclareceu
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei
Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois

Pouco antes de o ocidente se assombrar”

Hoje eu ouvi uma canção

Foto: "Raízes", de Frida Kahlo

domingo, 3 de junho de 2007

Palavras áridas


Hoje deixo só esse poema. Poema escrito pelo poeta sírio Nizar Qabbani. Não faço comentários, tampouco apologias. Não há aqui nem um conteúdo político, nacionalista ou nenhuma intenção de protesto. Esqueci qualquer referencial e tentei mostrar esses versos áridos como algo que eles realmente o são: universais

“Meu filho coloca à minha frente sua caixa de tintas
E pede que eu lhe desenhe um pássaro...
Embebo o pincel na cor cinza
E desenho-lhe um quadrado com um cadeado...e barras
Meu filho me diz, e o espanto preenche seus olhos:
‘Mas isso é uma prisão...
Meu pai, não sabes desenhar um pássaro?’
Digo-lhe: ‘Meu filho... não me leves a mal
De fato esqueci a forma dos pássaros’
Meu filho coloca à minha frente sua caixa de lápis
E pede que eu lhe desenhe um mar...
Apanho um lápis
E lhe desenho um círculo negro...
Meu filho me diz: ‘Mas isso é um círculo negro, meu pai...
Não sabes desenhar um mar?
Não sabes que o mar é azul?
Digo-lhe: ‘Meu filho,
Em meu tempo era perito em desenhar mares
Quanto a hoje levaram meu anzol
E o barco pesqueiro
Proibiram-me o diálogo com a cor azul
E de fisgar o peixe da liberdade’
Meu filho coloca à minha frente um caderno
E pede que eu lhe desenhe um espiga de trigo
Apanho a caneta
E desenho-lhe um revólver
Meu filho debocha de minha ignorância nas artes plásticas
E diz surpreso:
‘Não conheces a diferença entre o trigo e o revólver?’
Digo-lhe: ‘Meu filho,
No passado conhecia a forma do trigo
Do pão e da rosa
Mas neste tempo metálico
Em que as árvores da floresta se uniram
Aos homens das milícias
Em que a rosa passou a vestir roupas camufladas
No tempo das espigas armadas
Dos pássaros armados
Da cultura armada
E da religião armada...
Não há pão que eu compre
Que não contenha um revólver
Não há flor que eu colha no campo
Que não aponte um revólver para minha face
Não há livro que eu compre
Que não venha a explodir entre meus dedos...’
Meu filho senta-se na borda da cama
E pede que eu lhe recite um poema
Uma lágrima minha cai no travesseiro
Ele a apanha perplexo e diz:
‘Mas isto é uma lágrima, meu pai, não um poema’
Digo-lhe:
‘Quando cresceres, meu filho,
E leres uma antologia de poesia árabe
Saberás que a palavra e a lágrima são irmãs
E que a poesia árabe
Nada mais é que uma lágrima que emerge dentre os dedos’
E pede que eu lhe desenhe uma pátria
O pincel estremece em minha mão
E caio chorando...”

Nizar Qabbani

sábado, 2 de junho de 2007

Caminhos


Guimarães Rosa escreveu uma vez: “Só existe um caminho: caminhar para dentro de si mesmo”. Eu tenho repetido essa frase em minha cabeça nos últimos dias e devo dizer que o sábio escritor estava corretíssimo. Caminhar para dento de si, driblando obstáculos e tomando desvios é a grande conquista que o ser humano deve alcançar enquanto ser humano.
A longa jornada para dentro de si mesmo começa quanto se toma consciência de quem se é se aceita como tal. Para muitas pessoas isso ainda é uma utopia, já que tentam seguir o padrão geral ditado pela cartilha do “como se deve ser”. Não existe nada pior do que se anular em virtude de não de não se aceitar e tentar ser exatamente aquilo que não se é. Não que os seres humanos não sejam mutáveis, mas existem coisas que são talhadas na sua essência. A não-aceitação e conseqüente não-conhecimento de si já são o primeiro obstáculo não transposto da jornada: no caminho isso nada mais é que um grande precipício que não pode ser transposto em virtude da ponte não construída.
É claro que se pode se atirar no precipício, mas isso raramente tem volta pois a tendência é distanciar-se ainda mais de si: essa queda se chama alienação.
Dentro de nós mesmos podemos passar por caminhos tortuosos, caminhos íngremes .. podemos nos deparar com uma encruzilhada e ter que decidir por qual caminho seguir ... nesse ponto há caminhos que têm um retorno logo à frente em caso de erro de percurso. Mas há também caminhos sem volta.
Pensando em tudo isso eu tento seguir a estrada e acredito que a ponte sobre o precipício já ficou para trás ... mas sei ainda que há muitos obstáculos e pior: muitas encruzilhadas. Às vezes tenho muito medo de me encontrar com 60 anos depois de ter percorrido um longo caminho e me lamentar por ter virado uma curva errada em um determinado ponto e ter percorrido até um lugar em que não gostaria de chegar. Eu tenho medo de não encontrar o retorno dessa estrada. O que determina em nossa vida que em algum ponto do caminho devemos tomar à direita ou não à esquerda? Seria isso uma capacidade inata? Não sei realmente responder ... só sei que nosso caminho em direção a nossa essência nunca acaba, mesmo depois da “morte” (morte ?). Sei que se escolhemos o nosso real caminho não precisamos procurar mais por retornos e sim seguir por belos lugares que nos levam cada vez mais a nós mesmos. Quanto mais próximo chegamos, mais belas são as paisagens já que estamos bem conosco mesmos e temos conhecimento para escolher as melhores estradas ...
O longo caminho para dentro de si não tem fim, mas em determinado momento alcança-se lugares onde a caminhada não é um fardo, mas uma dádiva ... esse caminho distante ainda de ser alcançado é como a bela estrada que às vezes vemos nos nosso sonhos ...

“Pedras no caminho? Guardo-as todas para construir meu castelo”
Fernando Pessoa

E sigo meu caminho em busca de mim mesmo. Dispenso a bússola: acho que as estrelas estão lá como uma forma muito mais bela de nos mostrar a direção a seguir ...


By: Carlos Eduardo Ramalho

sábado, 19 de maio de 2007

Recortes


Essa semana, ao arrumar algumas gavetas. me deparei com um recorte de jornal. Eu costumava recortar no jornal tudo que me interessava e guardar em gavetas ou caixas. Depois de um tempo, esses recortes foram sendo esquecidos e amarelados. Eles permaneceram intactos, no entanto.
Especificamente falando do recorte que encontrei, reli e senti algo diferente: um sentimento estranho, algo indescritível. Era uma poesia, da poetisa polonesa Wislawa Szymborska, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 1996. Esse poema, mais comtemporâneo que nunca, é profundamente real e descreve uma situação sob um foco raramente descrito. É um poema chocante e que me tocou há 10 anos quando o li pela primeira vez, tanto quanto me toca agora várias vezes após relê-lo ...


O terrorista, Ele observa


“A bomba explodirá no bar às treze e vinte.
Agora são apenas treze e desesseis.
Alguns terão ainda tempo para entrar;
alguns, para sair.
O terrorista já está do outro lado da rua.
A distância o protege de qualquer perigo.
E, bom, é como assistir a um filme
Uma mulher de casaco amarelo, ela entra.
Um homem de óculos escuros, ele sai.
Jovens de jeans, eles conversam.
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele mais baixo, ele se salvou, sai de lambreta.
E aquele mais alto, ele entra.
Treze e dezessete e quarenta segundos.
A moça ali, ela tem uma fita verde no cabelo.
Mas o ônibus a encobre de repente.
Treze e dezoito.
A moça sumiu.
Era tola o bastante para entrar, ou não?
Saberemos quando retirarem os corpos.
Treze e dezenove.
Ninguém mais parece entrar.
Um careca obeso, no entanto, está saindo.
Procura algo nos bolsos e
às treze e dezenove e cinqüenta segundos
ele volta para pegar suas malditas luvas.
São treze e vinte.
O tempo, como se arrasta.
Ainda não.
Sim, agora.
A bomba, ela explode”

Wislawa Szymborska


Foto: Essa foto chocou o mundo, quando publicada na imprensa mundial por ocasião do ataque de rebeldes a uma escola em Beslan, na Rússia, no início de setembro de 2004. O rosto da mãe que observa a filha morta é tão indecifrável e profundo como o poema de Szymborska

sábado, 12 de maio de 2007

A difícil arte de crescer



Eis aqui uma coisa inerente ao gênero humano (e a qualquer ser vivo) e do qual não se escapa de forma alguma: crescer, envelhecer, aprender a viver. Salvo Peter Pan, nós meros mortais adquirimos nova idade a cada ano e realizamos um ciclo pelo qual aprendemos coisas que supostamente são importantes, somos levados a repelir outras consideradas por demais “efêmeras” e nos tornamos “mais velhos”.
Bem, esse tema hoje é providencial: Completo hoje vinte e seis anos de vida. Pode parecer pouco para muitos ou muito para alguns. Para mim, realmente não sei, já que considero relativas quaisquer medidas ou comparações. Considero o momento atual, o melhor momento da minha vida, o momento em que a minha constante lucidez se torna ainda mais clara. Um momento de repensar o passado, sonhar o futuro, mas fincar minhas raízes no presente. Agora mais do que nunca sinto o gosto da palavra “independência”, embora saiba que nenhum ser humano a tem por completo. Agora mais do que nunca pratico a cada dia o desprendimento, já que tenho a lúcida-real-pessimista visão de que as pessoas que me cercam e que me fazem bem, sairão uma a uma da minha vida e eu devo estar preparado para isso. Às vezes eu acho que crescer é isso mesmo: conseguir lidar com sentimentos e situações antes tão graves e conflituosos e conseguir se desligar facilmente de forma disciplinada. Ou seria crescer apenas um fingir ter ou ser algo que não se tem ou se é?
Hoje tomo consciência cada vez mais que os seres humanos são completamente individuais e enxergo o mundo cada vez menos coletivo. Hoje sei que um dia vou olhar para meus problemas da infância e adolescência e achá-los engraçados e que vou tomar consciência de maneira literal e material do significado da palavra “solidão”. Hoje acho todas essas palavras e reflexões um tanto piegas, mas vou senti-las realmente um dia. Acho que o momento atual, o exato momento em que me encontro agora, é um daqueles momentos em que me sinto espiritualizado, momentos que me coloco como em um plano alheio ao mundo, sem qualquer referencial e olho tudo com o olhar de alguém que nunca enxergou.
Viver realmente é muito bom, mas não é fácil e na altura dos meus vinte e seis anos completos digo que vale a pena viver e passar por tudo que passamos. Vale a pena aprender a cada dia que coisas aparentemente importantes para as “pessoas sérias”, como diria o Pequeno Príncipe, não valem nada para nós e que buscamos na verdade as coisas mais “inúteis”, pois elas nos fazem realmente sentir bem.


“Eu me pergunto se as estrelas são todas iluminadas ... não será para que cada possa um dia encontrar a sua?”, disse o Pequeno Príncipe ao homem adulto no deserto.


Seria crescer ir em busca da nossa estrela?
Sendo assim, isso justifica eu adorar tanto contemplar o céu à noite ...

domingo, 6 de maio de 2007

Em busca da terceira margem


Uma simples leitura do conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa abre um leque de milhões de possibilidades de análises e comentários a serem considerados. É algo brilhante, único. Confesso de antemão que não pretendo fazer nenhuma análise com base em teorias ou na crítica literária tradicional, visto que a profundidade da obra de Guimarães me levaria a um mundo inteiro de análises em cada mísera palavra metodicamente colocada por ele. Sendo assim, faço valer meu sangue da grande bota e declaro anarquia à ditadura da crítica, adotando o meu método de observar o texto. Aliás, criar seu próprio mundo e se guiar segundo sua própria visão de universo é um tema central nessa pequena história.
Eu sempre me perguntei qual seria essa tal de terceira margem do rio. Esse local além do conhecimento geográfico em que se posta o pai em busca de algo dentro de si mesmo. Dentro da canoa ele não aporta em nenhuma das duas margens e se fecha em si mesmo com que buscando se auto-conhecer. Ele se transporta a um universo paralelo onde uma terceira margem transcendental se instaura. Uma margem profunda que se não se limita com nada e que não consta nas cartas hidrográficas. Uma margem em que nós somos nós mesmos e caminhamos em direção ao nosso eu mais profundo, um local onde a leveza do ser é perfeitamente sustentável (que me perdoe Kundera).
Eu, particularmente, sigo sempre em busca de uma terceira margem, não para aportar, pois isso seria inconcebível, mas para “estar”. Transcender o previsível da existência não é um trabalho fácil e digo mais: é uma tarefa para poucos ... a terceira margem, margem profunda é bem difícil de se atingir e a maioria acaba sempre aportando sua canoa na margem direita ou esquerda: é preciso mergulhar fundo e permanecer firme, a terceira margem deve ser conquistada e uma vez transcendida, descobre-se o maior segredo que envolve a existência humana, que não é nada mais que viver.

Link para o conto “A terceira margem do rio”:
http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp


Foto: Fim de tarde às margens do Rio Grande, bem aqui na minha terrinha, Guaraci-SP

sábado, 28 de abril de 2007

Pensando em Anne Frank


Relendo hoje alguns textos escritos há algum tempo, me deparei com um texto que escrevi há dois anos e cujo tema central era Anne Frank. Escrevi sobre ela e sua maneira singular de ver o mundo e as profundas marcas que esse livro deixou em mim. Eu li o diário na adolescência, há alguns anos e essa obra se tornou uma referência na minha vida. À despeito da minha profunda admiração pelo povo judeu e pelas minhas convicções pacifistas, a figura humana de Anne me imprecionou. Anne faz qualquer pessoa querer viver mais e lutar pela vida, mesmo que se tenha tão poucas esperanças. E aqui vão minhas impressões ...



“Quem tem coragem e fé nunca perecerá na miséria”. Assim escreveu Anne Frank alguns meses antes de ser capturada e enviada ao campo de concentração de Bergen-Belsen. Essa mensagem de fé esperança deixada pela garota judia que por dois anos se escondeu com sua família em um sótão em Amsterdã por conta da perseguição nazista aos judeus, me faz sempre refletir sofre a vida e o seu real sentido. Por maior que fosse seu sofrimento físico e psicológico Anne se manteve firme até o último momento. Sua vida foi, acima de tudo, um exemplo de que não importa o quão grande possam ser os nossos problemas, há sempre uma outra maneira de agirmos face a eles.
Li O diário de Anne Frank inúmeras vezes e a cada nova leitura descubro mais coisas sobre essa incrível garota. Anne viveu há mais de 60 anos, mas seu drama permanece atual e universal. Quantas Annes não existem em Cabul, Bagdá, Grozny ou Sarajevo? Quantas pessoas que, mesmo não passando pelo que Anne passou não se identificam com ela e sua maneira extremamente humana de se portar perante a vida?
A primeira vez que li o diário foi há dez anos e desde então a história de Anne Frank vem influenciando muito o meu modo de encarar a vida. Eu me pego às vezes pensando como Anne agiria diante desta ou daquela situação. Quando tenho problemas reais, ou como na maioria das vezes, luto contra meus problemas imaginários, eu penso em Anne Frank. Como se entregar diante de tal situação que nada representa comparado ao que Anne passou? Uma garota que teve sua adolescência roubada em função de sua origem e religião e passou dois anos trancada em um sótão, sendo posteriormente morta em um campo de concentração? Anne vem influenciando há décadas milhões de pessoas em todo o mundo, iluminando a todos com a sua força vital.
O diário de Anne Frank é merecidamente reconhecido como o registro mais importante da Segunda Guerra Mundial. Entre os vários diários recolhidos entre os sobreviventes do Holocausto, o de Anne se destaca pela realidade com que os fatos são narrados. É difícil não se imaginar no “Anexo Secreto”, como Anne chamava o sótão, diante da clareza com que cada pessoa ou situação é por ela retratada. Ë difícil não se identificar com essa pessoa fascinante, que, a despeito de ser uma adolescente judia perseguida, relatou seu drama de uma maneira universal. É difícil, por fim, passar imune às mensagens deixadas por Anne, dentre as quais se destaca aquela que a define muito bem, que mostra o porquê de sua força para viver diante das situações mais adversas: “Quem tem coragem e fé nunca perecerá na miséria”.



Shalom



By: Carlos Eduardo de Oliveira Ramalho

sexta-feira, 20 de abril de 2007

O papel em branco ...


O papel em branco ...

Eu me incumbi de escrever um novo texto a ser postado essa semana ... me deparei com a folha em branco (na verdade, tela em branco) e com a cabeça sem idéias sobre o que escrever. Pensei: Meu Deus! Se para um mero texto a ser postado já surgem a dúvida e a necessidade de inspiração, passo a admirar ainda mais os grandes escritores pela sua genialidade e persistência. Que o digam Guimarães Rosa com sua prosa-poética, Fernando Pessoa e seus heterônimos ... Deus do céu! Eles eram realmente gênios! Alguns seres humanos deveriam ser definitivamente imortais ...


"Contemplo o lago mudo"


Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece,
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo.
Não sei se sou feliz
Não sei se desejo sê-lo

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

Fernando Pessoa, ele mesmo (em 14-08-1930) in: "Mensagem"


Citando Fernando Pessoa, me lembrei de um poema magnífico dele, daqueles que não se sei explicar a razão, mas mexem profundamente comigo ... confesso que mesmo na faculdade nunca fui um grande amigo da poesia em si, mas alguns poemas são magnificamente compostos e a despeito de qualquer análise ou teoria conseguem tocar a alma de quem o lê (que me importam o que dizem os críticos a respeito)
Ao ler esse poema pela primeira vez me senti transportado a um outro lugar ... não vi nada daquilo que as teorias me pediam para ver, só me enxerguei ao longe ... como se observando a mim mesmo. Não sei descrever o que vi, mas me senti bem, como se o conceito abstrato de felicidade não mais significasse, como se ele nem mesmo existisse. E contemplando o lago mudo, vou construindo meu próprio mundo, de sonhos e realidade, mas meu mundo onde a felicidade tal qual foi até hoje perpetuada é persona non grata ... onde ser feliz pode ser simplesmente nada e não tudo ... caindo no lugar comum, onde a felicidade realmente estão nas pequenas coisas do dia-a-dia ... e aí que me vejo contemplando o lago mudo e sentindo a brisa soprar ...


E o papel em branco deixa de existir ... isso me dá uma leve sensação de felicidade!

By: Carlos Eduardo de Oliveira Ramalho

domingo, 15 de abril de 2007

Pequeno manual de entendimento do mundo



Ainda estou me perguntando o que eu postaria em um blog ... com certeza coisas que eu escrevesse ou achasse interessante de se divulgar. Como primeiro "post" seria bom tentar mostrar um pouco como sou. Então, escolhi um texto meio tortuoso que escrevi há algum tempo que mostra um pouco a minha visão do que é o mundo ... ou do que ele não é ... voilà!



Um pequeno manual para o entendimento do mundo

Será que todos os seres humanos se questionam a respeito do “funcionamento” do mundo. Ou, se o fazem, fazem com a freqüência e consciência necessárias para achar algumas respostas e mais um milhão de dúvidas? Bem, em se tratando de um texto em primeira pessoa, vou me abster de tentar descobrir isso. Já me é difícil responder as centenas de questões que eu me faço todos os dias ou mesmo lidar com as outras pessoas e ainda comigo mesmo. Consigo mais incertezas que dúvidas, mas ao menos sei que luto contra a maré do inconsciente coletivo.
Para tudo há uma resposta, teoricamente se diria. Mas para cada resposta eu digo que vem de brinde uma dúzia de questões. Entender o mundo e entender a si mesmo não é tarefa fácil (e nem possível). Para tanto, filósofos, religiosos, psicanalistas criam teorias ou pregam doutrinas a fim de esclarecer um pouco mais essa escuridão que se chama viver.
Particularmente falando, concebo o mundo como um local simples, mas artificialmente complicado. As pessoas não conseguem entender a si mesmas, o que impossibilita a compreensão do que as cerca. Assim sendo tem-se duas insensatas saídas: culpar os outros, sejam enquanto grupo ou individualmente e fazer da convivência humana um perfeito inferno. (“O inferno são os outros”, escreveu Sartre) ou alienar-se o máximo possível se abstendo de pensar em algo mais complexo e consumir todas as teorias possíveis como se essas pudessem ser enlatadas e vendidas no supermercado. Mastigar e engolir certas pseudo-compreensões é com certeza mais fácil. Em seus personagens futuristas e alienados, autores como Orwell e Huxley recriam seres humanos completamente mecânicos como uma caricatura da humanidade tal qual se encontra agora. Nesse caso, poderia-se recorrer então a uma possível saída estratégica, que driblasse qualquer uma dessas opções? Afinal passar a vida em guerra com o mundo ou ignorando-o completamente não parecem saídas tão interessantes (apesar de serem as opções feitas pela esmagadora maioria da humanidade). Que tal uma saída baseada no auto-conhecimento e no pensamento individual, em que questionamentos fossem feitos como sinônimo de busca da sabedoria?
Voltando a minha concepção de mundo, reitero que não é possível traçar linhas ou estabelecer qualquer sistematização que possa satisfazer alguém com o mínimo de senso crítico. Não sou um pensador, mas não sou um alienado. Por que eu deveria pegar as teorias prontas e encarnar um personagem na multidão dita normal? Não que eu seja taxado de anormal, pelo contrario, mas simplesmente não me preocupo em ser mais um na multidão. Sou contra rótulos: não sou de esquerda, nem de direita. Não sou religioso, mas não sou descrente. Acredito em algo superior, mas longe da concepção que as pessoas em geral têm de Deus. Sou contra radicalismo e violência, mas defendo a liberdade a todo custo. “Um pequeno feixe de contradições”, disse Anne Frank sobre si mesma e isso se encaixa em qualquer pessoa, desde que essa esteja disposta a pensar sobre sua existência enquanto ser humano. Toda essa turbulência é interessante, mas altamente convulsiva, principalmente em um mundo de idéias prontas e pessoas ora radicais ou alienadas, mas de qualquer forma cegas (que o diga o brilhante Salman Rushdie condenado a morte por radicais islâmicos).
A liberdade de pensar e agir de acordo com a própria concepção sempre foi algo problemático e no inicio do século XXI, quando a conquista do espaço já é um fato histórico relativamente distante a conquista da liberdade se torna ainda mais distante, para não dizer utópica. A alienação e o radicalismo são pré-requisitos para o preconceito e para a discriminação. Pessoas com visões de mundo diferentes e dominadas pela coletivização do pensamento tendem a combater entre si em nome de suas idéias (suas mesmo de fato?). Como ser humano, sou dotado de preconceito. Isso é algo quase não-assumível, mas não me deixo levar além do prefixo, pois o conceito se forma depois, ignorando quaisquer rótulos externos. Eu me pergunto cheio de revolta como em nome de Deus ou em nome da justiça há pessoas que matam, oprimem, ferem e se orgulham disso. Se há algo que um ser humano pode fazer de mais baixo é humilhar, usar de violência ou matar outro ser humano seja qualquer o motivo. As pessoas veneram grandes conquistadores que encharcaram o planeta de sangue, enquanto eu particularmente os desprezo (Abro um parênteses para dizer que na Historia, o bandido ou o mocinho depende de quem vence ou de quem tem os aliados certos). Por isso Mahatma Gandhi, Martim Luther King, Lech Walesa, Nelson Mandela, Chico Mendes e tantos outros são ícones para mim. Eles provaram que lutar não precisa vir no mesmo campo semântico de “matar”.
Mas, enfim, retornando o fio do meu pensamento, que já está excessivamente tortuoso e não segue caminho algum (quem disse que eu deveria?) volto a questão primeira do questionamento sobre a vida. Ao terminar de ler um livro de Michael Cunningham, Uma casa no fim do mundo, me deparo com Jonathan que questiona por um momento a sua mãe se ela sentia em que ponto de sua vida havia uma tangente que após tomada não se teria volta? Sabemos há coisas reversíveis, mas há ocasiões em que determinadas decisões tomadas conduzem nossa existência a um caminho que se não definitivo, deixa para trás toda uma outra gama de direções que se fecham com porteiras que não podem mais ser transpostas. Essa decisão do que se fazer e a necessidade de se firmar em algo são dois paradoxos capazes de fazer qualquer ser humano entrar em desespero. Há pessoas que não fincam raízes, mas há outras que sentem necessidade disso e lutam contra a pressão da estabilidade com medo do marasmo que ela pode oferecer. Eu sou tão fincado na terra como uma jacarandá centenário, mas uma parte minha que voa tão alto que não consigo ver a olho nu. A intersecção dessas duas retas me fazem realmente mal ... Posso arrancar as raízes após um esforço muito grande ou mesmo posso alçar vôo e pousar em local seguro ... mas dentre essas duas opções escolho uma terceira: a incerteza, que me deixa mal, mas que me dá um chão temporário e movediço por onde me esguio. É nesse terreno incerto que eu vivo, aliás, que todas as pessoas vivem, mas sem perder o tempo (ou seria ganhar?) de se perguntar que direção tomar e o porquê tomar.
Como vemos ... a dura tarefa de existir não é algo tão simples assim. Se o fosse, cairia no marasmo total.




By: Carlos Eduardo de Oliveira Ramalho

Imagem: "A persistência da memória" de Salvador Dalí