Passagens por aqui ...

domingo, 24 de junho de 2007

Silêncio


O silêncio e o branco do papel expressam às vezes mais que palavras ditas ou textos escritos ...

Hoje eu não escrevo ... apenas observo

E sinto ...


Surdina - Cecília Meireles

Quem toca piano sob a chuva,
na tarde turva e despovoada?
De que antiga, límpida música
recebo a lembrança apagada

Minha vida, numa poltrona
jaz, diante da janela aberta
Vejo árvores, nuvens e a longa
rota do tempo, descoberta

Entre os meus olhos descansados
e os meus descansados ouvidos,
alguém colhe com dedos calmos
ramos de som descoloridos

A chuva interfere na música
Tocam tão longe! O turvo dia
mistura piano, árvore, nuvens,
séculos de melancolia


Foto: Moça na janela, de Salvador Dalí

sábado, 23 de junho de 2007

Liberdade


Já há algumas semanas eu me questiono cada vez mais sobre o sentido de palavras como justiça, liberdade e paz. Já há anos que eu me indigno com a humanidade e luto diariamente para que permaneça em mim esse sentimento de indignação. Há coisas que por mais comuns que pareçam, nunca devemos nos acostumar e devemos sempre manter vivo o sentimento de perplexidade. Desses pensamentos surgiram uma reflexão sobre a liberdade ...

Liberdade

A história da humanidade foi sempre marcada por lutas em prol da liberdade. Ainda hoje milhões de pessoas lutam por seus direitos em diversas partes do mundo. Parece incrível que em pleno século XXI seja ainda negada a tantas pessoas uma necessidade tão básica quanto a de ser livre. Há ainda muita luta a ser realizada, mas uma luta sem armas, tal qual fizeram alguns mártires que lutaram incessantemente pela liberdade em suas nações
Não poderia nunca deixar de citar inicialmente o grande Mahatma Gandhi, principal líder da independência indiana, que durante anos lutou contra o domínio britânico, realizando o que ficou conhecido como resistência passiva. Lutar por seus direitos sim, mas sem derramamento de sangue. Gandhi liderou em 1930 uma longa marcha em direção ao mar, de onde os indianos retiraram um pouco de sal em protesto aos altos impostos pagos sobre o sal que os ingleses retiravam da própria Índia. A marcha soa até mesmo poética e revela ideais de um espírito elevado, alguém para quem a liberdade só fazia sentido quando não dependesse da morte de outros seres humanos, tanto que Gandhi disse uma vez: “A vida é a maior de todas as artes”. Após a conquista da independência pela Índia em 1947, Gandhi foi assassinado por um nacionalista hindu que não aceitava, assim como milhões de indianos hindus, o diálogo estabelecido por Gandhi com os muçulmanos indianos.
Assim como Gandhi na Índia, o pastor negro Martim Luther King liderou uma resistência pacífica nos Estados Unidos a partir da década de 50, buscando os mesmos direitos aos negros que aqueles dados aos brancos. Na América concebida como um sonho de liberdade existia ainda em pleno século XX, uma parcela da população, os negros, que não gozavam do “sonho americano”. Luther King liderou protestos e boicotes a transportes públicos e estabelecimentos públicos no sul dos EUA, além de marchas que mobilizaram centenas de milhares de pessoas. Sua estratégia de luta pacífica resultou em 1964 na Lei dos Direitos Civis que deu aos negros americanos os mesmos direitos que os dados aos brancos. Em 1963, durante uma manifestação em Washington proferiu em seu discurso a sua mais famosa frase: “Eu tenho um sonho, que um dia meus quatro filhos possam viver em uma nação onde eles não sejam julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. Luther King foi assassinado por um branco em 1968.
Nelson Mandela foi tal qual Luther King um ativista pelos direitos dos negros. Na África do Sul sob o regime do apartheid, a minoria branca, que correspondia a pouco mais de 10% da população detinha os poderes e a economia do país e a maioria negra não possuía quaisquer direitos civis estabelecidos perante a Constituição. Nelson Mandela e outros líderes negros lideraram protestos e boicotes a exemplo de Gandhi e King e de forma pacífica lutaram pela igualdade racial em seu país. Mandela sofreu muito em nome de suas convicções, passando quase 30 anos preso, sendo libertado apenas em 1990, com o fim do regime. Alguns anos depois assumiu o governo de seu país, então uma democracia multirracial e é hoje uma das personalidades mais respeitadas do mundo.
O princípio da luta sem armas teve seu lugar também no Brasil, na figura de um homem que nem sempre é lembrado pelos próprios brasileiros, mas é internacionalmente reconhecido como um mártir: Chico Mendes. Esse líder seringueiro acreano lutou pelos direitos dos povos da floresta e contra o desmatamento da Amazônia, ideais que se chocavam com os interesses de alguns grupos poderosos de fazendeiros. Durante sua vida, Mendes denunciou diversas vezes agressões à floresta e por conta disso foi assassinado em 1988. Foi sem dúvida um dos maiores brasileiros e alguém que incondicionalmente lutou pelos direitos de seu povo.
Poderia-se citar ainda muitas lideranças, pessoas que lutaram incessantemente contra a injustiça e que tinham como princípio a paz. Em seus ideais estavam a justiça e a liberdade, nunca a morte e a violência. Gandhi, Luther King, Nelson Mandela e Chico Mendes foram certamente alguns dos maiores exemplos de que a paz deve ser alcançada a partir da paz. Ironicamente três deles foram assassinados e um passou ter décadas em uma prisão, pelo simples fato de lutarem em prol da liberdade. Talvez toda essa barbárie se explique pelo fato de grande parcela da humanidade não estar ainda preparada para encarar a paz como uma realidade cotidiana. A história do mundo foi construída sobre guerras e as civilizações foram plantadas sobre sangue. Em pleno século XXI a linguagem das armas é ainda a linguagem corrente. Em pleno século XXI líderes (líderes de fato?) vêem nas armas a grande maneira de “espalhar a liberdade”. Nada parece ser tão contraditório e tão desumano. Nada é mais triste do que constatar que em nome da liberdade tanto sangue se derrame ainda em nosso mundo “civilizado”.

Foto: Um chinês desconhecido barra os tanques que massacraram milhares de manifestantes na Praça da Paz Celestial em 1989. Longa vida aos heróis sem armas!

domingo, 10 de junho de 2007

Hoje


Hoje enxerguei o mundo com olhos estranhos. Hoje, mais que qualquer outra ocasião me inseri num recorte temporal e me vi sem referências. Hoje eu tentei enxergar a vida de forma como se eu nada conhecesse, sem lançar mão do meu conhecimento de mundo. Hoje eu experimentei o sentimento do não-pertencer, do não-compreender do não se importar. Ao contrário do que se possa pensar, não foi um dia ruim. Hoje desci do “leão que sempre cavalguei” como compôs Adriana Calcanhoto e me vi só, mas não solitário. Hoje tentei compreender o quão efêmera são as coisas e vi o quanto as linhas entre a alegria e a tristeza são cruzadas e não paralelas.
Hoje me sinto feliz. Poderia perguntar o porquê? Sim. Deveria? Não, claro.
Há coisas sobre o qual não se deve pensar, apenas sentir ... há muitos mistérios sobre o qual não se sabe e não vou citar Shakespeare para não cair no lugar-comum. Simplesmente existem coisas sobre o qual perde-se tempo em tentar achar um fio racional.
Hoje meus olhos foram tão longe, tão longe que chegaram o mais perto de mim que eu já pude chegar.
Hoje foi um dia sui generis.
Hoje senti o gostinho daquela famosa frase de Clarice Lispector "O melhor ainda não foi dito, o melhor ainda está nas entrelinhas".
Hoje penso no hoje.
Hoje me sinto sem raízes.
Hoje me sinto bem.


Inverno - Adriana Calcanhotto
Composição: Adriana Calcanhoto/Antonio Cícero


“No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial

Há algo que jamais se esclareceu
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei
Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois

Pouco antes de o ocidente se assombrar”

Hoje eu ouvi uma canção

Foto: "Raízes", de Frida Kahlo

domingo, 3 de junho de 2007

Palavras áridas


Hoje deixo só esse poema. Poema escrito pelo poeta sírio Nizar Qabbani. Não faço comentários, tampouco apologias. Não há aqui nem um conteúdo político, nacionalista ou nenhuma intenção de protesto. Esqueci qualquer referencial e tentei mostrar esses versos áridos como algo que eles realmente o são: universais

“Meu filho coloca à minha frente sua caixa de tintas
E pede que eu lhe desenhe um pássaro...
Embebo o pincel na cor cinza
E desenho-lhe um quadrado com um cadeado...e barras
Meu filho me diz, e o espanto preenche seus olhos:
‘Mas isso é uma prisão...
Meu pai, não sabes desenhar um pássaro?’
Digo-lhe: ‘Meu filho... não me leves a mal
De fato esqueci a forma dos pássaros’
Meu filho coloca à minha frente sua caixa de lápis
E pede que eu lhe desenhe um mar...
Apanho um lápis
E lhe desenho um círculo negro...
Meu filho me diz: ‘Mas isso é um círculo negro, meu pai...
Não sabes desenhar um mar?
Não sabes que o mar é azul?
Digo-lhe: ‘Meu filho,
Em meu tempo era perito em desenhar mares
Quanto a hoje levaram meu anzol
E o barco pesqueiro
Proibiram-me o diálogo com a cor azul
E de fisgar o peixe da liberdade’
Meu filho coloca à minha frente um caderno
E pede que eu lhe desenhe um espiga de trigo
Apanho a caneta
E desenho-lhe um revólver
Meu filho debocha de minha ignorância nas artes plásticas
E diz surpreso:
‘Não conheces a diferença entre o trigo e o revólver?’
Digo-lhe: ‘Meu filho,
No passado conhecia a forma do trigo
Do pão e da rosa
Mas neste tempo metálico
Em que as árvores da floresta se uniram
Aos homens das milícias
Em que a rosa passou a vestir roupas camufladas
No tempo das espigas armadas
Dos pássaros armados
Da cultura armada
E da religião armada...
Não há pão que eu compre
Que não contenha um revólver
Não há flor que eu colha no campo
Que não aponte um revólver para minha face
Não há livro que eu compre
Que não venha a explodir entre meus dedos...’
Meu filho senta-se na borda da cama
E pede que eu lhe recite um poema
Uma lágrima minha cai no travesseiro
Ele a apanha perplexo e diz:
‘Mas isto é uma lágrima, meu pai, não um poema’
Digo-lhe:
‘Quando cresceres, meu filho,
E leres uma antologia de poesia árabe
Saberás que a palavra e a lágrima são irmãs
E que a poesia árabe
Nada mais é que uma lágrima que emerge dentre os dedos’
E pede que eu lhe desenhe uma pátria
O pincel estremece em minha mão
E caio chorando...”

Nizar Qabbani

sábado, 2 de junho de 2007

Caminhos


Guimarães Rosa escreveu uma vez: “Só existe um caminho: caminhar para dentro de si mesmo”. Eu tenho repetido essa frase em minha cabeça nos últimos dias e devo dizer que o sábio escritor estava corretíssimo. Caminhar para dento de si, driblando obstáculos e tomando desvios é a grande conquista que o ser humano deve alcançar enquanto ser humano.
A longa jornada para dentro de si mesmo começa quanto se toma consciência de quem se é se aceita como tal. Para muitas pessoas isso ainda é uma utopia, já que tentam seguir o padrão geral ditado pela cartilha do “como se deve ser”. Não existe nada pior do que se anular em virtude de não de não se aceitar e tentar ser exatamente aquilo que não se é. Não que os seres humanos não sejam mutáveis, mas existem coisas que são talhadas na sua essência. A não-aceitação e conseqüente não-conhecimento de si já são o primeiro obstáculo não transposto da jornada: no caminho isso nada mais é que um grande precipício que não pode ser transposto em virtude da ponte não construída.
É claro que se pode se atirar no precipício, mas isso raramente tem volta pois a tendência é distanciar-se ainda mais de si: essa queda se chama alienação.
Dentro de nós mesmos podemos passar por caminhos tortuosos, caminhos íngremes .. podemos nos deparar com uma encruzilhada e ter que decidir por qual caminho seguir ... nesse ponto há caminhos que têm um retorno logo à frente em caso de erro de percurso. Mas há também caminhos sem volta.
Pensando em tudo isso eu tento seguir a estrada e acredito que a ponte sobre o precipício já ficou para trás ... mas sei ainda que há muitos obstáculos e pior: muitas encruzilhadas. Às vezes tenho muito medo de me encontrar com 60 anos depois de ter percorrido um longo caminho e me lamentar por ter virado uma curva errada em um determinado ponto e ter percorrido até um lugar em que não gostaria de chegar. Eu tenho medo de não encontrar o retorno dessa estrada. O que determina em nossa vida que em algum ponto do caminho devemos tomar à direita ou não à esquerda? Seria isso uma capacidade inata? Não sei realmente responder ... só sei que nosso caminho em direção a nossa essência nunca acaba, mesmo depois da “morte” (morte ?). Sei que se escolhemos o nosso real caminho não precisamos procurar mais por retornos e sim seguir por belos lugares que nos levam cada vez mais a nós mesmos. Quanto mais próximo chegamos, mais belas são as paisagens já que estamos bem conosco mesmos e temos conhecimento para escolher as melhores estradas ...
O longo caminho para dentro de si não tem fim, mas em determinado momento alcança-se lugares onde a caminhada não é um fardo, mas uma dádiva ... esse caminho distante ainda de ser alcançado é como a bela estrada que às vezes vemos nos nosso sonhos ...

“Pedras no caminho? Guardo-as todas para construir meu castelo”
Fernando Pessoa

E sigo meu caminho em busca de mim mesmo. Dispenso a bússola: acho que as estrelas estão lá como uma forma muito mais bela de nos mostrar a direção a seguir ...


By: Carlos Eduardo Ramalho